A trama se passa numa cidadezinha do sertão nordestino. Catirina e Mateus são andarilhos que buscam um “pedacinho de terra” para morar com os filhos. Na feira da cidade aprontam a maior confusão com os feirantes. Nesse mesmo local chega coronel Bisâncio, o dono de todas as terras da redondeza. Catirina, num gesto de esperteza, ganha a confiança do coronel e um lugar para morar. Na fazenda, Mateus e Catirina descobrem um encanto que deve ser quebrado para a prosperidade deles e dos trabalhadores da terra.
FICHA TÉCNICA
TEXTO Ronaldo Queiroz
DIREÇÃO Cleydson Catarina
ASSISTENTE DE DIREÇÃO Ronaldo Queiroz
FIGURINOS Cleydson Catarina
ELENCO Cesar Filho Lourenço, Natalia do Nascimento, Rafael Silveira, João Lourenço da Silva, Rafael Ribeiro, Mônica da Silva, Anderson Nascimento, Bruna Kézia Lourenço, Brena Lourenço, Jane Meire Nobre, Luedna Madila, Luédila Nádida, Diego dos Santos, Diogo dos Santos, Lucileudo Cordeiro e Rosângela da Silva
O PROCESSO DE MONTAGEM
Atores Brincantes
Estudamos o ser brincante. A devoção dentro do reisado e do folguedo do boi, que são tradicionalmente pagamento de promessas. No Grupo de Teatro Filhos do Sertão há o encanto de ser sertanejo. Trabalhamos então, os rituais naturais do povo sertanejo, as crenças populares, como a crença no dia de São José. Partimos, depois, para danças populares, tais como o caboclinho, o Boi do Ceará, o xote, o carimbó. Sobre todas estudamos a origem e a estrutura dos personagens dentro da dança, dando, assim, uma forma física à estrutura dos personagens que foram surgindo no decorrer da oficina. A gente já sabia que ia trabalhar com a história do boi no espetáculo final, então, procuramos caminhos e conversávamos sobre as estruturas. Começamos a brincar com os passos da dança e com os traços de alguns personagens que os atoress foram criando, por exemplo: a Catirina sempre andava com o rebolado do carimbó; o Mateus aparecia com o passo saltitante do cavalo marinho do folclore pernambucano, etc.
Partimos para o estudo da máscara de seres encantados. Uma delas foi a do boi, com a qual trabalhamos movimentos de capoeira na construção de um boi saltitante, que avança, que dá medo e que ao mesmo tempo brinca. Estudamos a esperança do boi, que brinca e sofre, mas que se renova. Foi firmado o trabalho de máscara para o espetáculo. Alguns dos atores identificaram-se com a máscara e declararam gosto por essa linguagem, perceberam que a máscara é a essência do teatro, sendo essa máscara externa ou construída no próprio rosto do ator. Ficou determinado que o personagem boi usaria máscara e os outros trabalhariam a mascara do rosto.
A partir dos trabalhos realizados dentro dos laboratórios, tendo como ponto inicial a noção de brincante e das conversas passadas sobre o boi (folguedo) e o assentamento, Ronaldo Queiroz construiu o texto “A saga de Catarina e Mateus pela terra prometida aos filhos seus”.
Fizemos exercícios encima dos instrumentos e das cantigas que os atores já trabalhavam em grupo, para trabalhar mais a intimidade dos atores com a música. Trabalhamos a interpretação direto do texto, pois o texto já trazia coisas que estavam dentro dele, como o boi. Queríamos que as características desse teatro saíssem naturalmente dos atores, deixando de lado um teatro de técnicas e surgindo um teatro de vivências, onde, através dessa idéia, vieram propostas de procissão de santos e de quadrilha, que os atores fazem naturalmente.
Do sagrado ao profano
O espetáculo começa com um cortejo Ave-Maria e se transforma em quadrilha, o que foi tanto proposta dos atores como também o texto caminhava para essa proposta. O trabalho de interpretação veio através das brincadeiras da situação religiosa. Os atores foram percebendo que o natural era cênico, o sonoridade que levava para uma interpretação (por exemplo, o som dos bodes) da quentura que estava no sertão, seu lugar de moradia. A idéia era reforçar o que já estava dentro dos atores, pois um brincante pega a figura de algo que vê e coloca no corpo e na voz.
Começamos, então, a brincar com as cantigas de boi, de reisado, a cantar e, nessas cantigas, trabalhando técnica vocal, brincando com a impostação de voz, saindo da voz natural e indo para uma voz cênica, mas sempre com os educandos construindo seus personagens.
Saímos da coisa da procissão, do sagrado litúrgico católico, e entramos no sagrado do brincante que sai pra rua e canta o seu reisado e, nesse outro cantar, cria uma motivação para se ter uma outra estrutura, uma estrutura carnavalesca, a estrutura que sai para fora para conquistar o outro e preencher o espaço, criando, assim, o espaço cênico e a musicalidade vira o texto da interpretação do ator. Cantamos à exaustão, tocando e cantando como em uma festa, deixando essa energia expandir e, naturalmente, a interpretação, não do ator e sim de um brincante, de jovens agricultores teatralizando a vida, e não atores de outros mundos, pois o mundo trabalhado é o deles, é o de suas próprias vidas e vivências.
Os personagens
Começamos os exercícios dentro dos gestuais do trabalho agrícola dentro do assentamento, com os atores a repetir esses movimentos e criarem encima destes. Foram naturalmente discernindo os seus personagens e, isso se dando, foram adequando-os aos animais estudados cenicamente (bode, galinha, vaca, etc), como, por exemplo, a personagem Catirina começou a ser estruturada a partir de uma galinha choca, que cisca, que protege seus filhos e que pula enfrentando quem vem contra seus filhos. O personagem Mateus descobre um galo goguento, que cansado, aceita o que está dentro do galinheiro. O coro vira um rebanho de bode, que berra junto, que mexe chocalho junto, que não tem coragem de enfrentar sendo um e, por isso, eles estão sempre em grupo. Começamos a dramaturgia da fala do coro, que é uma fala em uníssono. Do meio desse coro sai um coronel, que é um bode solista, velho, que se curva diante de um boi, mas não dentro da visão do bumba meu boi e sim de um boi negro, místico, mascarado, e, dentro desse exercício, focamos sempre a brincadeira.
A interpretação, desta maneira, começa a se estruturar naturalmente no corpo e na voz do ator brincante. Eles começam a criar emoções, percepções de cenas e de ritmo cênico, criando gestualidades pequenas para dentro e depois soltando essa criação para fora com movimentos amplos, criando uma roda que fala para dentro e para fora em um trabalho de teatro circular. Estudamos a noção do espaço no teatro de rua, a noção de movimento físico e vocal, onde também o corpo fala para poder tocar em cada pessoa ao redor, dentro da idéia do texto, dentro da atmosfera do texto.
Trabalhamos temas com criticidade para o espetáculo, todavia também para as próprias vidas dos atores. Uma interpretação viva de uma arte crítica, pensada não só para o lazer, mas para a reflexão. Tivemos debates falando dos personagens, falando os sentimentos de Catirina, pondo-a na frente do Auto do Boi, pois dentro do assentamento, as mulheres estão na frente das “brigas” e Mateus um gênero acomodado com o coronelismo preponderante nesse universo da terra. Os personagens não estavam longe e, sim, bem próximos, pois a história também é a história deles (de se trabalhar pelo fazendeiro e ser meeiro). Começaram, então, a criar os laboratórios individuais, criando adereços e “vestindo” com esses adereços os seus personagens. Todos os meios cotidianos deles eram fonte de pesquisa para construção de seus personagens.
Um processo colaborativo
Veio a proposta de ter uma quadrilha, pois eles brincavam muito de quadrilha e tinham intimidade com suas danças e músicas. Os atores também solicitaram ter uma composição do Zé Filho, ator que interpretava Mateus, em alguma parte do espetáculo e, que o este não fosse apelativo e sim lúdico, como um espetáculo próprio de brincantes. Por todos nós essas propostas foram aceitas e começamos a ensaiar o coro da Ave-Maria com o solo do “Cio da Terra”, depois o Jhonnatas, do grupo Cordapé, o qual convidamos para realizar essa oficina para trabalhar o corpo dos atores, começou a criar passos de quadrilha dentro da música do reisado.
Começamos a brincar com varas (que se transformaram em bandeiras), criando estruturas de casas, de barracas de feira. Usando as varas-bandeiras, como espadas e também como uma rede, um balançador. Os atores começaram a propor coisas com essas varas, criando janelas, cavalos e a estrutura cênica a partir desses adereços, mas sempre brincando, sempre com a visão lúdica.
O processo foi passando de cena em cena, tudo muito simples, nada complicado, e repassando o que foi montado no dia anterior. As pessoas da comunidade participavam do ensaio, gostavam de cantar, de participar das cenas e era agradável porque os atores brincantes faziam uma troca com o público que se transformava em elenco, pois a idéia do trabalho era essa: a que cena chegasse ao povo e o povo chegasse à cena. Algumas marcações foram feitas convidando o povo a participar como no cortejo da morte do boi.
No velório do boi, o povo levava o boi, chorava junto ao coronel com a dor da morte do boi. Como também com a Salve Rainha de Catirina, que ressuscitava o boi e convidava quem estava na roda para rezar junto com ela pra ressuscitar o boi. A visão desse espetáculo era a comunhão do povo que estava na roda, pois a história que a gente conta não é só nossa e sim também do povo que estava na roda. As falas de Mateus e Catirina de reclamação ou de interrogação são sempre direcionadas para o povo que estava na roda, pois queria que o povo refletisse com o texto, mesmo que posto sob uma brincadeira. A direção em conjunto foi direcionada pelo povo que estava assistindo… que estava participando.